"Se há uma coisa que fascina qualquer criança, principalmente as que vivem no interior, é procissão. Quando os santos são cultuados com devoção e os rituais obedecidos e praticados com total fé religiosa. Como toda criança, meu sonho era sair vestida de anjinho na procissão de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. No Engenho da Cruz, onde vivemos um bom tempo, meu pai, que era devoto da Santa, preparava com todo o esmero a decoração do andor e as asas dos anjos. Durante mesesjuntávamos penas de patos, de pombo, de ganso e colocávamos tudo num saco enorme, em meados de novembro, começava a colagem na cartolina branca . Doze crianças escolhidas vestiam os camisolões de cetim lumière azuis e brancas e eu ajudava papai em tudo.
Quando a inspetora visitava a escola, eu sempre era a escolhida. Sambava, cantava e declamava. Era escolhida porque me tinham como a mais inteligente. Mas na hora da seleção das crianças para a procissão só íam as mais clarinhas.
Houve um ano que resolvi questionar aquilo. Eu já estava entendendo mais as coisas e certas atitudes me deixavam desconfortável.
- Professora, e a minha roupa?, perguntei em tom de reclamação.
- Beata, você não pode se vestir de anjo. Nem você, nem esses aí (só sobraram além de mim, mais um menino e uma menina preta). Você não pode ser uma filha de Maria.
- Por quê? Eu não sou filha de Papai do Céu?
- Não. Os filhos de Deus não são pretos, e você é preta!
E encerrou o assunto. Eu comecei a chorar. Foi o choro mais profundo que eu jamais tive."
Uma dor imensa ao ler isso. Ao ler ontem para o marido chorei novamente e dói hoje ao escrever. Entre tantas passagens emocionantes e tristes desse livro que me foi presenteada por um amigo que me é muito caro, revivi a dor de uma mulher que representa tantas outras mulheres, que sofrem ainda hoje o que ela sofreu quando ainda era uma menina.
Esse trecho do livro de Haroldo Costa representa não apenas Beatriz (a mãe Beata), mas cada menina e menino negros, cada menina e menino pobres, cada morador de comunidade, cada homossexual, cada religioso, cada artista (hoje chamados de vagabundos por deputado que não falo o nome), por todos os excluídos desse país. Quem nunca? Quem nunca foi-lhe tirado o prazer nessa vida...
Em tempo, em justa homenagem na Alemanha, ao saberem dessa história, mãe Beata de Yemonjá, da cidade de Cachoeira da Bahia, dona de tantos títulos, reconhecida internacionalmente ganhou asas imensas e luxuosa de seus anfitriões.
Paz e Bem!
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